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sexta-feira, 19 de maio de 2017

"O que você ganha com essas loucuras?"

Por mais que pareça óbvia a resposta, garanto, que não é tão simples assim.
Vou dividir alguns trechos da minha história para poder explicar, e talvez criar uma ponte com coerência, sobre a explicação do encantamento que possuo por aventuras outdoor.
Quando muito jovem sofri um trauma no crânio e precisei fazer uma cirurgia de emergência devido à hemorragia interna que perdurou por vários dias até para tal descobrimento da lesão. Causas e soluções não vem ao caso, mas as sequelas que poderiam ser causadas eram extremamente preocupantes, e eu não consegui escapar de algumas privações.
Nos primeiros dias de recuperação, ainda na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), além da deformação facial, foi constatado minha falta de memória; porém não somente o fato de esquecer de algumas coisas, como é o esperado quando tratasse do assunto, mas, de fato, esqueci tudo. Ou quase. A única memória que o cérebro não abriu mão foram os nomes das minhas duas irmãs, que na época eram bebês de colo. Quanto ao resto... Nada!
Não sabia, ou melhor, não lembrava do passado em geral. Foi necessário reaprender coisas básicas como o nome das pessoas, ler, escrever, o nome de objetos e suas utilizações, entre uma infinidade sobre o mundo.
Tempos difíceis, mas vamos ao que interessa...
Depois de muita fisioterapia e drogas a única cicatriz que permaneceu foi a depressão.
Nos primeiros anos convivendo com essa doença eu, por falta de conhecimento, acreditava que todo aquele turbilhão não passava de frescura. Não conseguia admitir que isso é uma enfermidade e que poderia ser tratada. O tempo passou, e a situação agravou, então resolvi desconsiderar meus preconceitos e fui procurar um profissional para devido acompanhamento.
Com muita terapia, dinheiro gasto e medicamentos tarjas pretas consegui uma subsistência razoável, talvez, o que é julgado como "normal"; porém uma das coisas que mais amava escapava pelos dedos por viver em estado torpor. Os medicamentos me mantinham bem, só que a criatividade não se manifestava. A literatura que sempre ansiei em produzir não conseguia fluir por causa do ritual diário das cápsulas coloridas.
Não condeno o trabalho do médico responsável, nem as soluções farmacêuticas, muito menos a vigília psiquiátrica; que em grande parte foram de ajuda fundamental para evolução positiva.
Quem sabe até mesmo essa privação de criação seja apenas fruto do meu ceticismo funcional do caso. E não recomendo que faça o mesmo, não possuo qualificação para isso e não incentivo qualquer  abandono de qualquer tratamento; só estou relatando o que procedeu comigo.
Abandonei tudo...
A depressão não me abandonou e com o passar do tempo sem ingerir nenhuma espécie de remédio o quadro foi agravando gradativamente até que, ainda não sei explicar como, resolvi sair pela manhã para visitar minha avó. Não andava me sentido bem e mimo de avó cura muitas feridas emocionais, mas o detalhe é que ela morava em outra cidade, cerca de 50 quilômetros de distância. Apesar de obter carteira de habilitação para carros, não dirijo em hipótese alguma, decidi fazer esse trajeto de bicicleta. Lembrando que nessa data a minha idade era 27 anos e fazia, pelo menos, 10 que não sentara em algum selim.
Pedalar 100 quilômetros no total sem possuir qualquer tipo de preparo físico concordo em chamar de loucura, ou melhor, irresponsabilidade. Apesar do desgaste incalculável, por sorte, não sofri danos e não tive momentos de periculosidade. A bicicleta com qual me arrisquei não estava bem regulada, mal lubrificada, sem câmera reserva e não possuía fonte de iluminação sinalizadora; eu só tinha o capacete e não usei luvas, uniforme ou sapatilha. Dores musculares e assaduras surgiram, mas valeu a pena por ter aprendido da pior maneira as necessidades precisas para um bom desenvolvimento no esporte.
Todo esse cansaço me liberou no organismo uma dosagem altíssima de endorfina. Acredito que viciei. A sensação recompensadora é de valor inestimável e resolvi me dedicar, quando possível, aos pedais. Comecei a treinar semanalmente, porém sem acompanhamento. Não segui planilhas, não treinei subidas e nem sabia o que era intervalado ou sprint; só queria pedalar em locais afastados que pudessem me isolar e manter algum contato com a natureza, mesmo sendo superficial. Quando retornava de cada passeio a depressão se desprendia, com a falsa ideia, que jamais tivesse sentido. Eu havia encontrado o meu remédio.
A partir desse divisor de águas me arrisquei por outras vinhas descobrindo uvas cada vez mais adocicadas.
Lutei, literalmente, pratiquei paintball e, em uma exceção irreparável, até fui jogar futebol com amigos; mas ainda não era o que desejava, não me completava.
Estar em uma condição outdoor, sem um quadrante de limitações e marcações, com o vento empurrando contra e muita lama nos pés me fez voltar no tempo; em tempo no qual era feliz somente por estar ali, em tempos em que até bungee jump experimentei.
Os rochedos, cumes e trilhas invadiram minha vida através dessa busca incessante por bem estar. Escrever os livros e praticar qualquer esporte, sem seguir regras predeterminadas, me trouxeram até esse "caderno de anotações pessoais online".
Aqui escrevo o que bem entendo, sem compromisso, sem pressão e com leveza; sem querer, até errando na ortografia ou até mesmo em concordância.
Não tenho, e não quero, um editor para esse fim que possa reavaliar as escritas e indicar as correções necessárias, reservo esse auxílio para os impressos. Nessas linhas procuro uma liberdade, que dificilmente acontece, em mesclar as letras com aventura pelo simples prazer em fazer.
Quero acampar, correr, pedalar e sobreviver para contar essas histórias.
Hoje, exatamente hoje, completo 30 anos me presenteando com algo que ninguém pode me dar... É a junção de uma das faces do amor, doses de intensidade e resgate de sanidade.
O blog até pode ser julgado narcisista, mas como não seria se nesses rabiscos estão as minhas experiências vividas?
Por tanto, retornando ao título, "O que você ganha com essas loucuras?" a minha resposta é um tanto abstrata:
- Não ganho nada, apenas acrescento!